Nara Pede Passagem
1966
Muitos artistas brasileiros terão tido igual ou maior popularidade que Nara. Mas raro terá sido aquele
em torno do qual se formou, como no caso de Nara, uma controvérsia interminável que, nos seus pólos extremos, cocloca de um lado os
louveores incondicionais e, de outro, os críticos implacáveis. Acreditamos que o tempo se encarregará de decantar os excessos de ambas
as partes, o que não nos impede de constatar que esse choque de opiniões tão díspares tem uma causa concreta: a personalidade original
de Nara dentro da música popular brasileira.
Nara tem, como cantora, uma voz peculiar, extremamente sensível, a que se casa um modo também pessoal de interpretação. Mas Nara não é
apenas uma cantora. É também uma intérprete, entendendo-se por intérprete não a maneira própria de cantar, mas uma posição interpretativa,
indagativa e seletiva em face da nossa música ppopular. Não sei se ne faço entender, digo que Nara não se coloca passivamente diante da
música popular, escolhendo para seus discos os sambas da moda ou aquelas composições que le praceme interessantes. Não. Ela está
permanentemente debruçada sobre o acervo da música popular, do passado e do presente, a redescobrir nesse universo de emoções músicas que,
de hoje ou de ontem, melhor exprimem o sentimento atual. Esta é a razão por que Nara tem desempenhado um papel de pioneira no lançamento de
certos tipos de criação musical, bem como na ressureição de velhas e deliciosas canções brasileiras. E Nara tem consciencia disso: o seu
último elepê intitulavapse “Canto Livre de Nara”. A liberdade, no plano humano, no plano artístico, no plano social, está nela como uma
aspiração e um exercício permanente.
Nara foi a “musa da bossa nova” quando a bossa nova ainda era olhada com suspeita. Mais tarde, ela estava ao lado do que buscaram, para a
bossa nova, raízes brasileiras mais profundas. E, nesse retorno às origens, Nara redescobriu que a bossa nova era apenas uma das formas
atuais de cantar a alma do povo e que esse povo não tem só problemas afetivos e sentimentais. Esse povo tem também opinião. E ela deu o
passo para lançar o samba político, que fala da luta do homem brasileiro, nos campos e nas cidades. O disco “Opinião” abriu caminho. Em
breve todo munda grava música política. Através dessa descoberta, o samba foi para os teatros, foi cantado emcoro por vastas platéias, das
mais diferentes classes, identificadas pela verdade da música popular.
Mas Nara não parou aí. No fundo da música popular política está uma aspiração de liberdade e de felicidade que, indiretamente, se exprime
no samba que fala do amor que nasce, do amor que morre, da beleza da vida, do sofrimento e da saudade. Nara compreendeu que, através de sua
múscia, o povo exalta a vida, valoriza os seus sentimentos e suas conquistas, supera o sofrimento e bebe ali a esperança de uma vida melhor.
Este disco, “Nara Pede Passagem”, é o resultado dessa nova descoberta. Aqui, ela junta o samba político à seresta e o samba-enredo da escola
de samba a recentes criações da bossa nova, que se transforma. É essa liberdade de escolha e de comprometimento com o novo que define a
personalidade de Nara como intérprete de nossa música popular.
Mas não se veja nisso a caracterização de Nara como uma espécie de ser excepcional ou bicho estranho dentro da nossa vida artística. É que
através dela se manifesta um fenômeno novo na história do samba: a sua penetração de maneira profunda na população urbana dos grandes centros
e em todas as classes. É certo que, de há muito, o samba é consumido pela classe média das grandes cidades. Mas hoje, graças à expansão dos
veículos de comunicação de massas, a conjugação do rádio, da tevê, do disco e do teatro, a música popular brasileira atinge um público bem mais
amplo e de maneira mais atuante, tornado-se, também, meio de expressão dos compositores jovens surgidos não apenas nos morros, mas em Copacabana
e Ipanema. Essa revolução musical, que assusta os preservadores do samba autêntico, deflagra a polêmica, em cujo centro se encontra, como um
dos principais veículos dessa integração, a figura inquieta de Nara.